Fábio Roberto Notícias // Ilhéus . Bahia

Miretty quer ser a primeira mulher trans da Câmara de Ilhéus

Miretty de olho na vaga na Câmara.
Miretty de olho na vaga na Câmara.

O humano é um ser da linguagem. As palavras nos afetam com algo além do som: o sentido. Os nomes que recebemos dos nossos pais são o que temos de mais familiar. Por outro lado, o nome pode causar estranhamento na pessoa por ele designada. Nesses casos, a palavra que os pais escolheram para chamar o filho causa inquietação, ao invés de familiaridade.

Isso aconteceu com Miretty. Atualmente, quando perguntada sobre o assunto, ela prefere não revelar como os pais a chamaram ao nascer. “O nome de antigamente não existe mais”, explica a coordenadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS) na Bahia.

Mirety Di Biachio Neves Amaral define a si mesma como mulher trans ou travesti. Observa, no entanto, que a segunda expressão ainda carrega uma marca negativa, como se fosse um custo social que uma parte da sociedade impõe às minorias políticas. Um preço pago por quem desafia a normatividade simplesmente por existir.

Segundo ela, a escolha de um termo ou de outro (mulher trans ou travesti) não pressupõe “uma cirurgia de redesignação” nem qualquer tipo mudança no corpo, como o tratamento hormonal que iniciou já adulta.

Cabeleireira há vinte anos, Miretty é grata à amiga Valerie Farias, proprietária do salão de beleza onde aprendeu a profissão, no bairro Nelson Costa. Miretty avalia que a inserção no mercado de trabalho é um dos maiores desafios para que travestis e transexuais desconstruam os papéis marginalizados que uma sociedade estruturalmente preconceituosa lhes atribui.

“O preconceito não tem vez com a gente. Nosso partido carrega a atitude democrata no nome. Acolhemos todo mundo com o mesmo respeito, desde que assuma o compromisso de trabalhar honestamente por Ilhéus. Por isso, fiquei muito feliz ao empossar Miretty na presidência do DEM Diversidade, no último sábado (18)”, declarou o empresário Valderico Junior, presidente municipal do partido.

Hoje, 25 de julho de 2020, é o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Para Miretty, a data não é apenas comemorativa. Também serve para lembrar que as mulheres devem se manter unidas e fortes, sem esquecer que existem diferentes níveis de opressão social contra todas, sobretudo as negras.

Na entrevista abaixo, ela conta um pouco da própria história, explica o motivo da sua entrada na política e fala por que se filiou ao DEM para disputar uma cadeira na Câmara de Vereadores de Ilhéus, uma cidade onde o Poder Legislativo é exercido exclusivamente por homens desde 2013. Leia.

Quando você se descobriu mulher num corpo masculino?

Foi no início da adolescência. Tinha muito preconceito – não diferente de hoje. As pessoas diziam: “o menino com roupa de mulher”. Isso era visto como uma coisa absurda. Eu andava muito com gays, até porque eu era gay na época. Eu me assumi mesmo como gay com quatorze anos.

Nessa época você já usava as roupas típicas do vestuário feminino?

Não, por causa dos meus pais e também da sociedade. Eu passei a usar as roupas mesmo com 25 anos, quando comecei minha transição – um pouco tarde, mas foi quando comecei a tomar hormônios. Ilhéus, por exemplo, não presta esse serviço hoje às pessoas que sentem a necessidade de iniciar uma transformação hormonal. No Brasil isso pode ser feito a partir dos 18 anos de idade. Eu comecei tarde, com 28. Uma das vantagens do início cedo é evitar os pelos. Eu defendo essa tese de começar a usar os hormônios cedo para que elas tenham um corpo bem mais feminino.

Você chegou a fazer cirurgias?

Não fiz nem tenho pretensão de fazer. Uma amiga minha foi fazer a retificação de nome aqui em Ilhéus, e o juiz disse que ela só poderia fazer a retificação se fizesse cirurgia. Na verdade isso não é mais obrigatório. Hoje em dia a trans pode ser redesignada ou não. Isso depende da orientação dela: se ela é trans ou travesti. A trans é como ela se define.

Você se define como uma mulher trans?

É, como uma mulher trans, mas também posso usar “travesti”. Aí vem a questão: “O travesti? A travesti? Esse nome foi muito marginalizado, porque foram essas pessoas que deram um nome e suas vidas para a gente estar aqui hoje. Foram muitas vidas.

O que lhe motivou a ser pré-candidata a vereadora?

Resolvi colocar meu nome por não aceitar muitas coisas ruins que nossos governantes vêm fazendo, principalmente no que diz respeito às travestis e às pessoas trans. Quero defender nossos direitos. Também coloquei meu nome para que as outras pessoas da comunidade LGBT encarem e entrem na política, assim como outros grupos, como as mulheres. A gente tem que lutar para ter voz e vez, porque nós temos nossos direitos.

Por que escolheu o Democratas?

Na verdade, eu não iria entrar no DEM, mas, o doutor Diran [Filho, vice-presidente municipal do partido e pré-candidato a vereador] e Valderico Junior me convidaram. Eu faço parte de movimentos sociais. Sou coordenadora estadual do FONATRANS, o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros. Quando me convidaram, entrei em contato com a presidente da entidade para pedir um conselho. De imediato, algumas meninas falaram que o partido é direita, isso e aquilo. Eu expliquei que fui bem acolhida. Outros partidos da cidade não me deram o apoio que o DEM está me dando. O partido quem faz somos nós.

O que você pode fazer de mais importante por Ilhéus, se for eleita vereadora?

Minha bandeira principal é a de apoio às causas LGBT, mas também de toda a sociedade. Quero trabalhar por todas as pessoas e especialmente por minha comunidade, que é a Zona Sul. Muitos prefeitos, infelizmente, não fizeram nada lá. Também acredito que a comunidade LGBT, especialmente travestis e transexuais, precisa de mais espaço no mercado de trabalho. Por que um travesti não pode trabalhar numa loja do comércio? Ela pode, todo mundo é capaz. Na maioria das vezes, o que falta é oportunidade. Tem gente que pensa que a pessoa não vai ter um comportamento adequado por causa da orientação sexual. Isso é preconceito.

Qual é o seu papel no DEM Diversidade?

Presidente. Algumas pessoas preferem “presidenta”.

Você prefere como?

Presidente.

A conversa nos trouxe ao tema da linguagem. Existe um debate sobre como os diferentes discursos se referem à comunidade LGBT. Uma das questões é a origem da orientação afetiva: se é uma característica que nasce com a pessoa, se é construída socialmente, ou, ainda, o resultado da convergência entre biologia e psique. O tema parece muito controverso. Como você descreve a sua experiência?

Eu acredito que nasce com a pessoa. Na reunião de sábado [que instituiu formalmente o DEM Diversidade], eu até falei que ninguém vira gay, já nasce, porque a pessoa não vai chegar lá e falar: “Hoje eu resolvi ser gay”. Não vira, já nasce gay.


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